Quando duas pessoas decidem se casar, uma das escolhas mais importantes é o regime de bens que vai reger o patrimônio do casal durante o casamento.
A lei brasileira prevê quatro tipos de regimes de bens:
- Comunhão parcial de bens: tudo o que for adquirido durante o casamento pertence a ambos.
- Comunhão universal de bens: todos os bens, mesmo os que existiam antes do casamento, são comuns ao casal.
- Separação total de bens: cada cônjuge mantém o que é seu, antes e durante o casamento.
- Participação final nos aquestos: cada um administra seu patrimônio durante o casamento, mas divide o que foi adquirido depois, ao final da relação.
Quando os noivos não escolhem formalmente um regime no momento do casamento, aplica-se automaticamente o regime de comunhão parcial de bens, que é a regra geral.
Há também uma exceção legal importante: se um dos cônjuges tiver mais de 70 anos no momento do casamento, a lei impõe o regime obrigatório de separação total de bens, conforme o artigo 1.641, II, do Código Civil.
O objetivo deste artigo é explicar, de forma simples e prática, como funciona a divisão da herança quando uma pessoa casada falece, considerando os três regimes mais comuns: comunhão parcial, separação convencional e separação obrigatória de bens.
Regimes menos utilizados atualmente, como a comunhão universal e a participação final nos aquestos, não serão abordados neste artigo.
Diferença entre meação e herança
A meação do cônjuge sobrevivente não se confunde com a herança.
Meação é um direito próprio do cônjuge da pessoa falecida, decorrente do regime de bens adotado durante o casamento. Nesse sentido, é preciso separar a meação do cônjuge sobrevivente da herança. A meação não é objeto de transmissão sucessória, ou seja, não deve ser tributada e tampouco incluída no cálculo das despesas do inventário judicial ou extrajudicial.
O cônjuge sobrevivente, além da meação, também poderá ser herdeiro — a depender do regime de bens escolhido pelo casal durante o casamento.
Sobre o tema, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da Paraíba esclarece a diferença entre meação e herança:
(...) É mister não confundir o direito à herança — assegurado na forma do art. 1.829 do Código Civil — com o direito à meação; a meação é um efeito da comunhão de bens, enquanto o direito sucessório independe do regime matrimonial, onde os descendentes da pessoa falecida são chamados a substituí-la, considerando-se o grau hereditário que a esta competia na qualidade de herdeiro legítimo (...)
(TJ/PB, Ac. unân. 3ª Câmara Cível, Aglnstr. 018.1980.000131-7/002 - comarca de Guarabira, Rel. Juiz de Direito convocado Carlos Antônio Sarmento, j. 21.9.10)
O cônjuge sobrevivente não terá direito à herança caso o casal esteja separado judicialmente ou separado de fato, pois, nesses casos, há a cessação da solidariedade recíproca que justificaria a transmissão sucessória — conforme interpretação conjunta do art. 1.830 do Código Civil e da jurisprudência dos Tribunais.
Como fica a divisão da herança no regime de comunhão parcial de bens
No regime de comunhão parcial de bens, se uma das partes falece, o cônjuge sobrevivente pode ou não ser herdeiro — isso vai depender do tipo de patrimônio deixado e da existência de filhos ou outros parentes.
A regra geral diz que o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes (filhos, netos, etc.). No entanto, essa concorrência só ocorre se o falecido deixou bens particulares, como por exemplo: um imóvel que já era dele antes do casamento ou um bem recebido por herança ou doação.
Quando o patrimônio for exclusivamente comum — ou seja, adquirido durante o casamento — o cônjuge sobrevivente não entra como herdeiro. Ele receberá apenas a meação (sua metade) e os filhos herdarão a outra parte.
Já se existirem bens particulares, o cônjuge sobrevivente terá direito à meação dos bens comuns e ainda herdará, junto com os filhos, a parte dos bens particulares.
Mesmo quando o bem particular tiver cláusula de incomunicabilidade (por exemplo, doação ou herança com essa condição), o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que isso não impede que o cônjuge seja herdeiro. A cláusula apenas impede a divisão em vida, mas não afeta os direitos na herança.
Se não houver filhos, o cônjuge sobrevivente concorre com os pais do falecido (ou outros ascendentes, como avós), conforme o artigo 1.829, II, do Código Civil.
📌 Exemplo prático de divisão da herança com filhos
Imagine uma família formada por marido, esposa e uma filha. O marido falece sem deixar testamento. A família possuía:
- R$ 100.000,00 em aplicação financeira (bem comum);
- Um apartamento no valor de R$ 500.000,00 (bem comum);
- Uma casa no valor de R$ 250.000,00 em nome do marido, comprada antes do casamento (bem particular).
Pela lei, 50% da aplicação e do apartamento ficam com a esposa (meação). A outra metade, junto com os 100% da casa (bem particular), entram no inventário.
A partilha ficará assim:
- 50% da aplicação e do apartamento vão para a filha (herança);
- A casa será dividida entre mãe e filha: 50% para cada uma.
📌 Exemplo prático de divisão da herança com mãe do falecido (sem filhos)
Agora imagine um casal sem filhos. O marido falece, sua mãe está viva. O patrimônio da família é o mesmo: aplicação de R$ 100 mil, apartamento de R$ 500 mil (bens comuns) e casa de R$ 250 mil (bem particular do falecido).
A esposa continua com 50% dos bens comuns. A outra metade (herança) será dividida entre ela e a mãe do falecido, pois a lei prevê que, na ausência de filhos, os pais concorrem com o cônjuge sobrevivente.
Nesse caso, tanto os bens comuns quanto o bem particular são partilhados entre a esposa e a sogra.
A divisão será a seguinte, conforme o art. 1.837 do Código Civil:
- 50% da aplicação e do apartamento para a esposa (meação);
- Dos outros 50%, metade para a esposa e metade para a mãe do falecido (25% cada);
- A casa (bem particular) também será dividida: 50% para a esposa e 50% para a sogra.
📌 Exemplo de divisão da herança com ambos os pais vivos
Se os dois pais do falecido estiverem vivos, a divisão muda: o cônjuge sobrevivente terá direito a 1/3 da herança, e os 2/3 restantes vão para o sogro e a sogra.
- 1/3 da herança para a esposa (bens comuns e particulares);
- Os outros 2/3 divididos igualmente entre os pais do falecido.
✅ E se não houver descendentes nem ascendentes?
Nesse caso, a esposa herda tudo — ou seja, recebe a meação e a totalidade da herança, como prevê o artigo 1.838 do Código Civil.
Divisão da herança no regime de separação total de bens
O regime de separação total de bens — também chamado de separação convencional — significa que cada cônjuge mantém seu próprio patrimônio, sem comunicação de bens adquiridos antes ou durante o casamento, seja por compra, herança ou doação.
Nesse modelo, se um dos cônjuges falece, o outro pode sim ser chamado à sucessão, concorrendo com os filhos (descendentes), conforme determina o art. 1.829, I, do Código Civil.
📌 Exemplo prático: herança no casamento com separação total
João e Maria eram casados sob o regime de separação total de bens e tinham um filho, Pedro. João falece, deixando um apartamento em seu nome.
- 50% do apartamento vai para Pedro (filho);
- 50% vai para Maria (esposa), como herdeira.
Mesmo não havendo comunhão de bens, a legislação assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de herdar. Mas esse entendimento não é unânime entre os estudiosos do Direito.
🔍 Discussão doutrinária: herança pode ir para terceiros?
Uma corrente de doutrinadores critica esse modelo. O argumento é que, em casos de famílias recompostas, a herança recebida pelo novo cônjuge pode acabar sendo transmitida a terceiros que não possuem qualquer vínculo com o falecido.
Famílias recompostas são aquelas em que um ou ambos os cônjuges têm filhos de relacionamentos anteriores.
📌 Exemplo prático com família recomposta
João e Maria foram casados sob separação total de bens e tiveram um filho, Pedro. Depois de se divorciarem, João casa-se com Camila, que já tinha uma filha, Laura. João falece, deixando um apartamento em seu nome.
- 50% do imóvel será herdado por Pedro (filho do João);
- 50% será herdado por Camila (esposa sobrevivente).
Se Camila vier a falecer, sua filha Laura — que não tem vínculo com João — poderá herdar os 50% recebidos por Camila. Assim, parte do patrimônio de João pode acabar com alguém totalmente alheio à sua linha hereditária.
Para essa corrente, esse desfecho não respeita a intenção do casal que escolheu a separação total de bens, pois parte do patrimônio que deveria ir aos filhos do falecido acaba indo para terceiros.
🧾 Outro ponto de vista: proteção ao cônjuge
Já outra linha de doutrinadores defende que o legislador quis proteger minimamente o cônjuge sobrevivente, mesmo em casamentos com separação de bens. Isso se alinha com o princípio da comunhão de vida e afeto entre os cônjuges, conforme previsto no art. 1.511 do Código Civil.
Essa visão foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que desde 2015 entende que o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário, mesmo na separação de bens, concorrendo com os descendentes.
📚 Concorrência com ascendentes
Se não houver filhos ou netos, o cônjuge sobrevivente concorre com os ascendentes do falecido — pais, avós ou bisavós — conforme o art. 1.829, II do Código Civil.
Nesse cenário, todo o patrimônio deixado pela pessoa falecida será dividido entre o cônjuge e os ascendentes.
Herança no regime de separação obrigatória de bens
Quando uma pessoa com mais de 70 anos decide se casar, a lei impõe o regime de separação obrigatória de bens. Essa regra está prevista no art. 1.641, II do Código Civil.
Art. 1.641 — É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: [...]
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.344/2010)
Apesar da previsão legal, a jurisprudência passou a relativizar essa separação absoluta. O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 377, segundo a qual os bens adquiridos onerosamente durante o casamento devem ser partilhados.
Súmula 377 do STF: No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.
Isso significa que, na prática, os bens adquiridos de forma onerosa durante o casamento podem sim ser divididos, mesmo no regime de separação obrigatória. Porém, quando se trata de herança, a regra é diferente.
O art. 1.829, I do Código Civil prevê que o cônjuge sobrevivente não concorre na herança se o casamento foi regido pela separação obrigatória de bens.
A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens; [...]
O Superior Tribunal de Justiça confirmou essa interpretação, diferenciando os efeitos sucessórios entre a separação convencional e a obrigatória:
(...) 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845, CC);
2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes;
3. A concorrência é afastada apenas no regime da separação legal de bens previsto no art. 1.641 do Código Civil. (...)
(STJ, REsp. 1.382.170/SP, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 22.4.2015)
Caso não existam descendentes, o cônjuge sobrevivente pode concorrer com os ascendentes (pais, avós etc.), conforme o art. 1.829, II do Código Civil.
Nessa hipótese, todo o patrimônio deixado pela pessoa falecida será partilhado entre o cônjuge e os ascendentes.
Percentual da herança entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes
Quando o cônjuge concorre com filhos ou outros descendentes, o art. 1.832 do Código Civil define que ele receberá uma parte igual à dos demais herdeiros.
Art. 1.832 — Em concorrência com os descendentes, caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo sua cota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Em termos práticos:
- Se o falecido deixou 1 filho, o cônjuge e o filho herdam 50% cada;
- Se deixou 2 filhos, a herança é dividida em 3 partes: 1 para cada filho e 1 para o cônjuge;
- Se todos os filhos forem também filhos do cônjuge sobrevivente, este nunca receberá menos de 25% da herança.
Exemplo: um homem faleceu deixando 10 filhos com a mesma esposa. Neste caso, ela recebe 25% da herança, e os filhos dividem os 75% restantes — cada um com cerca de 7,5%.
Já se os filhos forem de outro relacionamento, o total da herança será dividido em 11 partes iguais (10 filhos + cônjuge), ou seja, cerca de 9,09% para cada um — e o cônjuge não terá direito à cota mínima de 25%.
📌 E nas famílias recompostas?
Quando há filhos de relacionamentos diferentes — os chamados casos de filiação híbrida — não há uma regra clara no Código Civil. Isso gera interpretações divergentes e insegurança jurídica.
Como referência, pode-se adotar o Enunciado 527 da Jornada de Direito Civil, que orienta:
"Na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida."
Percentual da herança entre o cônjuge sobrevivente e os ascendentes
Quando o falecido não deixa filhos ou netos, o cônjuge sobrevivente concorre na herança com os pais, avós ou outros ascendentes. Nessa situação, todo o patrimônio deixado será dividido entre o cônjuge e esses familiares.
A herança pode incluir tanto bens particulares quanto bens comuns adquiridos durante o casamento.
O percentual que cada herdeiro terá deve seguir a regra prevista no art. 1.837 do Código Civil:
Art. 1.837 — Concorrendo com ascendentes em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.
Ou seja, se o cônjuge concorrer com os dois pais vivos do falecido, a divisão da herança será feita da seguinte forma:
- 1/3 para o cônjuge sobrevivente;
- 1/3 para o pai do falecido;
- 1/3 para a mãe do falecido.
Mas se apenas um dos pais estiver vivo, ou se os herdeiros forem avós, bisavós ou outro ascendente de grau mais distante, o cônjuge sobrevivente terá direito à metade da herança. A outra metade será dividida entre os demais herdeiros ascendentes.
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