O juízo de primeiro grau acolheu o pedido da genitora, fundamentando o que segue:
[..] Não há um manual regulamentando a co-parentalidade em tempos de covid-19, situação absolutamente extraordinária, uma crise de saúde pública sem precedentes, cujo potencial de letalidade não pode ser minimizado, especialmente, segundo informam epidemiologistas e infectologistas, nessa primeira fase anterior ao ápice da disseminação do vírus em Porto Alegre, que deverá ocorrer no mês de abril.
Nesse contexto, espera-se que os pais tenham sensibilidade para conjuntamente deliberar sobre o cumprimento das diretrizes das autoridades quanto à permanência em casa como melhor forma de prevenir o contágio pelo vírus SARS Cov-2 e conter sua disseminação.
Certo é que a responsabilidade pela saúde dos filhos é dos genitores, os quais devem considerar variados fatores de risco, como são o estado de saúde das crianças, o convívio com familiares idosos, a atividade laboral dos genitores em relação à probabilidade de contágio, distância e modalidade de deslocamento, dentre tantos outros aspectos.
O melhor modo de lidar com a situação é conversando francamente e expressando suas preocupações de forma transparente e honestamente voltada ao bem estar dos filhos. A prioridade nesse momento é fazer tudo que estiver ao seu alcance para evitar que seus filhos sejam expostos ao vírus.
À falta de entendimento entre os responsáveis, preconiza o CPC que o juiz deve designar uma audiência visando conciliar os interesses e necessidades de ambos os genitores e também dos filhos. Essa possibilidade está afastada por conta da diretriz do Tribunal de Justiça, que fechou os Foros e suspendeu a realização de audiências até 30 de abril, em face da crise que assola o estado ? Resolução n. 02?2020.
Tal é o contexto que admite sacrificar o cotidiano que se desfrutava antes da pandemia, seja como forma de proteção das crianças mesmas, pois que embora menos vulneráveis não estão imunes aos riscos da covid-19, seja para prevenir que, uma vez contaminadas as crianças, mesmo assintomaticamente, transmitam o vírus infectando seus familiares e impactando o conjunto da sociedade.
Isso é assim porque outros países que andam à nossa frente no trato da pandemia revelam a impossibilidade de dar atendimento ao elevado número de doentes que necessitarão de respiradores inexistentes em UTIs saturadas.
Pois bem, nesse estado de calamidade pública instalado, resta ponderar qual o bem da vida mais significativo: promover o contato físico entre pais e filhos submetendo ambos a risco de vida ou sendo possível adaptar a convivência parental para o modo virtual, preservando-se simultaneamente a exposição ao risco de contaminação e a convivência parental, ainda que na modalidade digital.
De resto, não fica afastada a hipótese de posterior compensação dos tempos de convivência, buscando-se um modo de resgatar os tempos agora sacrificados.
Contribui para essa reflexão o fato de que as escolas se encontram fechadas e ninguém há de desconhecer a relevância do estudo na vida das crianças. Tal condição, por si só, ilustra a excepcionalidade dos tempos que estamos vivenciando e seu impacto na infância, a justificar a adoção de medidas drásticas por parte das autoridades responsáveis.
Pode-se contrapor que eventuais deslocamentos são autorizados, portanto não há restrição aos deslocamentos inerentes ao convívio parental. De fato, são autorizados deslocamentos visando o abastecimento de víveres ou medicamentos àqueles que se encontram confinados, bem como para o exercício de diversas atividades essenciais nesse momento de crise, notadamente aquelas afetas aos profissionais da saúde, que se encontram na linha de frente no enfrentamento da pandemia. São pessoas que não podem simplesmente estar recolhidas ao recesso do lar, quando os há, pois sua contribuição é considerada fundamental para o bem comum.
Na hipótese dos autos, a única razão a circulação das pessoas seria propiciar o contato físico entre pais e filhos, o qual pode ser adaptado para o convívio virtual. Assim, minimiza-se o risco de contágio e se garante o convívio parental, especialmente necessário às crianças nesse momento em que estão sob o impacto psicológico da pandemia.
Por todo o exposto, tenho que merece acolhida o pedido de suspensão do contato físico nos moldes requeridos, o que fixo até 30 de abril, preservando-se a convivência parental mediante contato virtual, que deverá ser disponibilizado diariamente em horário a ser ajustado entre as partes. [...]
O pai, por sua vez, impetrou recurso no Tribunal do Rio Grande do Sul requerendo a reforma da decisão do juízo de primeiro grau alegando, em síntese, que a convivência na forma presencial não importará em risco para a criança, pois tomará todas as providências de proteção recomendadas, informando, inclusive, que o filho não fará uso de transporte público para deslocamento entre o domicílio da mãe e do domicílio do pai.
O pai ainda destacou os benefícios das visitas presenciais na medida que reside em uma casa que possui pátio para que a criança possa brincar, enquanto que a genitora reside em um apartamento.
O genitor relembrou ainda que visitas virtuais não suprirão a necessidade de convivência entre pai e filho.
Do exposto requereu, em pedido liminar, que seja restabelecida a convivência paterna presencial e, ao final, sua confirmação, com o provimento do recurso.
A desembargadora relatora Vera Lucia Deboni da Sétima Câmara Cível do Tribunal do Rio Grande do Sul, em decisão monocrática, entendeu correta a decisão de primeiro grau ao estabelecer a convivência do pai com o filho por contato virtual diário, em horário a ser ajustado pelas partes, negando o provimento do recurso.
Nas palavras da desembargadora:
"[...] O decisum está em alinho com as determinações governamentais de isolamento social, em virtude da pandemia de covid-19, sendo prudente que a visitação presencial seja, por ora, suspensa.
Ainda que não haja qualquer indicação de que o agravante possa descumprir as determinações de isolamento social, deve-se ponderar, na atual conjuntura, não só a proteção à saúde de seu filho, um de apenas 4 anos de idade, mas, também, o interesse da coletividade em não alastrar a pandemia, com o que é prudente que a visitação presencial seja, no momento, desautorizada.
Nada obsta, contudo, que as partes, urbanamente e tomando os cuidados necessários e amplamente divulgados pelos órgãos de segurança, ajustem visitação presencial do genitor, desde que de forma esporádica.
Considerando, por outro lado, que a situação instalada se altera a cada dia, ressalto que nova regulação de visitas poderá ser feita pelo juízo de 1º grau, a qualquer tempo, relembrando que a decisão estipulou a visitação virtual até o dia 30/04/2020, apenas. [...]
Minhas considerações
A convivência presencial com ambos genitores é um direito da criança e deve ser garantido diante da inexistência de qualquer dado concludente ou indício no sentido de sua prejudicialidade.
Da leitura da decisão monocrática não consta na síntese do voto da relatora um cenário que evidencie que a criança, o pai ou a mãe possui problema de saúde, traduzido em comorbidade, inserindo-os em um grupo de risco. De igual modo, não existe informação de que a criança mantém moradia com pessoas idosas, também consideradas pelas autoridades governamentais como pessoas pertencentes ao grupo de risco.
Não há, ainda, qualquer informação na decisão monocrática sobre a profissão do pai e da mãe de modo a aferir se em razão da profissão exercida a genitora ou o genitor pode ser considerado um potencial vetor da doença.
Nesse sentido, o Poder Judiciário ao valer-se da justificativa de ponderação sobre o bem da vida mais significativo (promover o contato físico entre pais e filhos submetendo ambos a risco de vida ou sendo possível adaptar a convivência parental para o modo virtual para preservar a exposição ao risco), por certo, deveria explorar os pontos acima destacados para fundamentar adequadamente a preferência por um modelo invés do outro.
Portanto, no meu sentir o Poder Judiciário aparentemente não garantiu um julgamento mais justo, em busca da verdade real ou, ao menos, de uma maior verossimilhança, na medida que não considerou adequadamente qual a zona de mais perigo para a criança considerando o local de residência de ambos os genitores e os demais pressupostos destacados acima.
Poder-se-ia argumentar que o referido comportamento do Poder Judiciário esbarraria no ativismo judicial, tão criticado pela doutrina, contudo, entendo que tal afirmação não merece prosperar na medida que no âmbito familiar salvaguarda-se o melhor interesse do menor, a igualdade parental e a parentalidade responsável, uma vez que a família é a base da sociedade.
Sob outro enfoque manter a criança apenas com a genitora, ainda que excepcionalmente, contribui para a manutenção de uma missão estafante para mulher na medida que lidará com todas as responsabilidades de casa, do trabalho remoto e do cuidado integral do filho, o que, por óbvio, não deveria ser assumida por apenas um dos genitores.
Ademais, deve-se ainda considerar que a pandemia do covid-19 tem sido uma forte aliada da mãe alienadora e do pai alienador que, para atingir interesses escusos, aproveita o atual cenário para afastar a criança do outro genitor.
De outro lado, não se pode olvidar que a pandemia do coronavírus (covid-19) impõe limites ao convívio social, ao deslocamento e à aglomeração de pessoas, especialmente para evitar a disseminação do vírus.
Contudo, a fundamentação do Poder Judiciário de que a suspensão das visitas coaduna com as determinações governamentais de isolamento social são por demais frágeis para dar arrimo a referida fundamentação considerando as informações apresentadas na decisão analisada.
Isso porque consta no voto da relatora de que não haveria nenhum óbice de convívio esporádico entre a criança e o genitor não guardião caso os genitores consensualmente ajustassem as visitas presenciais desde que tomado os cuidados necessários seguindo as determinações divulgadas pelos órgãos de segurança.
De acordo com a referida decisão, as visitas foram estipuladas em finais de semanas alternados, com pernoite, das 10h de sábado às 18h de domingo, bem como alternando-se os feriados.
Existem vozes ecoando na doutrina que entendem que visitas quinzenais podem ser classificadas como esporádicas (que ocorre poucas vezes) considerando um simples cálculo aritmético: de 30 dias, o pai pode ficar com a criança apenas 6 dias no mês (1 dia e meio por visita presencial quinzenal).
Nesse sentido, o simples fato de se admitir na decisão a possibilidade de visita presencial ajustada pelas partes de forma esporádica, força admitir enfraquecimento da tese criada pela relatora do recurso da Sétima Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de que a substituição da convivência presencial pela convivência virtual foi deferida justamente para preservar o risco de contaminação da doença e, como consequência, risco à vida.
Ademais, da leitura da decisão monocrática restou evidenciado que não seria a vontade do genitor infectar o filho com a moléstia em comento, tanto que informou ao juízo que tem tomado todas as providências de proteção recomendadas, informando, inclusive, que o translado da casa materna à casa paterna ocorre em veículo particular.
De igual modo, não constou na síntese do relatório qualquer informação que desabone a figura paterna, presumindo a devida igualdade parental com a genitora da criança.
Nesse contexto, é possível trilhar entendimento que a decisão possui um viés parental aparentemente discriminatório, pois, de um lado, presume que a figura materna manter-se-á absolutamente isolada com o filho em seu apartamento sem que se tenha qualquer prova ou evidência relatada na decisão que dê arrimo a essa presunção e, de outro lado, pressupõe que o pai não terá a mesma responsabilidade ao desconsiderar as afirmações que o pai também se mantém isolado e que tomará todos os cuidados necessários para levar o filho consigo.
Pensando na problemática, se a mãe mora com o filho em um apartamento, o fato da genitora ser obrigada a utilizar o elevador para as mais variadas situações (levar lixo no depósito, acessar a garagem, buscar cartas na caixa de correspondência, etc) já pressupõe o risco de aglomeração e perigo de contágio da doença, tema este utilizado como argumento para suspender a convivência presencial do pai com o filho.
Não custa rememorar que a recomendação de isolamento social brasileiro relacionado ao covid-19 consiste no comportamento voluntário da pessoa que deixa de participar do convívio presencial com o restante da sociedade para evitar aglomerações e diminuir a propagação da doença.
Portanto, como regra, entendo que o isolamento social relacionado a convivência de pai e filho ou mãe e filho não se aplica à família, salvo quando devidamente demonstrado comportamento temerário do ente familiar em desacordo com as determinações governamentais de isolamento social, bem como circunstâncias concretas que demonstrem a existência de qualquer dado concludente ou indício no sentido de prejudicialidade do convívio presencial da criança com o genitor.
Do exposto da análise, entendo que a decisão proferida pela relatora apresenta omissão e contradição na fundamentação, sendo, portanto, insatisfatória do ponto de vista do melhor interesse da criança.
Fonte: Tribunal de Justiça Rio Grande do Sul - Comarca Porto Alegre - Nº 70084141001 (Nº CNJ: 0052459-71.2020.8.21.7000)
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